terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Avaliações de curso e interpretações possíveis


Todas as vezes que minha memória permite, promovo, ao final dos cursos que ministro, uma etapa de avaliação dos alunos, mais ou menos livre, na maior parte das vezes anônima e sempre com intuito construtivo de repensar minha prática didática. 
O interessante desse tipo de avaliação é que as respostas não são óbvias e não podem ser lidas de forma ingênua, sem um filtro de reflexão mínimo que considere o contexto, as vicissitudes do processo e a disposição individual de cada estudante. Quando penso assim, tento estar um passo à frente da lógica clientelista de focar na satisfação imediata do consumidor.
É importante que se pense claramente sobre isso. Aluno não é cliente, nem consumidor. A relação de educação exige posturas do professor e do aluno que não são as mesmas de um comprador e de um lojista, por exemplo. Ainda que o aluno não esteja satisfeito com a informação ou a discussão dentro de uma disciplina, o que pauta e fundamenta a escolha formativa não é jamais essa insatisfação, e sim as necessidades de formação e o rigor da ciência e da produção de conhecimento dentro da área de estudo em questão. Haverá sempre essa tensão entre o desprazer e desgaste de tentar aprender e o prazer de estar habilitado para uso do conhecimento adquirido; passionalmente, será a tensão entre a insegurança inicial e a clareza posterior.
Quando ministramos nossos cursos, estamos quase sempre no território da insegurança inicial, e se não levarmos isso em conta ao lermos as sugestões que recebemos, faremos modificações inconsistentes em nosso modo de trabalho.
É muito comum receber, nas avaliações sobre o curso, críticas sobre a compreensão de determinados tópicos que se revelam, na verdade, dominados e entendidos nas correções de provas e nos trabalhos de aproveitamento. Nesse caso, pensando no modo como o aluno me vê e tomando o que ele diz de forma literal, eu poderia achar que teria de rever minha forma de ministrar as aulas. Porém, se verifico que o aluno dominou os conceitos que julgava não dominar, como posso interpretar essa insatisfação? Se esse quadro vale para a maior parte de uma turma, prefiro manter a metodologia, com revisões pontuais, porque, afinal de contas, do ponto de vista formativo, a longo prazo, o processo funcionou. Quando isso ocorre, a insegurança dos estudantes talvez advenha de outros fatores em minha relação pessoal ou discursiva com a turma, que (esses sim) careçam de revisão.
O contrário também já aconteceu comigo: receber elogios e parabenizações por cursos em que os alunos não conseguiram se apropriar dos conceitos fundamentais. Nesse caso, a revisão do método revela-se muito mais urgente e vital para evolução de meu trabalho. Nesse caso, percebe-se uma falsa sensação de aprendizado, provavelmente relacionada a deficiências em minha atuação.
Outra crítica comum de minhas aulas é a "chatice"ou "desestímulo" dos alunos ao acompanhá-las. É provável que meu excesso de sisudez conduza a essa sensação, e considero importantíssimo que os cursos que desenvolvo promovam bons momentos na relação com os alunos. Entretanto, mais uma vez, essa não pode ser uma medida isolada. Certas chatices, como conceitos paradigmáticos a explorar exaustivamente, leituras imprescindíveis e informações incontornavelmente memorizadas, são bem-vindas se, ao final do processo, crescimentos se evidenciam. Não é minha prioridade, na condução do curso, a felicidade ou satisfação imediata e evidente do estudante. Ele pode não gostar de meu método ou de minha aula (o que é muito triste para mim, que sou orgulhoso), mas o parâmetro é se ele consegue ou não se desenvolver a partir do que aprendeu.
No carrossel de emoções próprio de qualquer formação a longo prazo, com as idas e vindas de euforias e frustrações, a medida da qualidade do trabalho do professor se dá, também, no longo prazo. A construção da percepção da importância do que foi estudado, para o aluno, também só pode se dar a longo prazo. Não tem saída.
Isso significa o seguinte: o "ibope do professor", isolado da análise de outros fatores, é um indicativo traiçoeiro e delicado. Nem sempre ele refletirá a percepção do aluno sobre a importância de determinadas ações e cobranças realizadas em curto prazo, mas com efeitos posteriores. É preciso cuidado com isso. Formação intelectual não tem devolução e ressarcimento em 30 dias. Não é assim que funciona. 

sábado, 31 de dezembro de 2016

Educação envolve muita gente



Olhando de forma irrefletida e superficial nosso trabalho e nossos contratos, somos remunerados como professores para realizar atividades de ensino dentro da especialidade que nossa formação contempla (não a nossa especialidade, porque ela não constitui, necessariamente, uma disciplina do currículo). Pensando dessa forma, caberia a cada um de nós encontrar uma maneira de didatizar conteúdos considerados elementares ou basilares, e encaixar essa solução dentro do universo chamado escola, com suas chamadas, salas de aula, horários de entrada, intervalo e saída etc. Assim, teríamos vários trabalhos em paralelo dentro de uma instituição, cada um deles voltado para uma área do conhecimento: matemática, educação física, artes, português, cada disciplina ministrada dentro da liberdade de cátedra do professor que dela se encarrega.
Embora essa descrição esteja servindo de contraexemplo introdutório, muitas escolas acabam trabalhando dessa forma, por inúmeras razões que não seria possível esgotar num texto curto. Essa segmentação do currículo e da atuação profissional é defendida por muitos docentes, mesmo às vezes de forma inconsciente, porque ela aparentemente cria um espaço de poder e controle sobre aquele campo do saber e sobre as práticas institucionais exigidas no magistério. Frequentemente percebemos colegas que não aceitam dialogar sobre suas práticas educativas e de interação com os alunos, por considerarem que são consolidadas e adequadas dentro do que compreendem que se configure como contribuição formativa da disciplina que ministram.
Acredito que a palavra "formativa" seja a chave da questão. O trabalho do docente dentro de uma escola é um trabalho de formação, seja qual for o caminho formativo escolhido ou a tendência pedagógica subjacente. Se trabalhamos em uma escola religiosa, sustentada por entidades religiosas, não há como negar ou abstrair de nosso trabalho todo um corpo de valores que se associa àquela religião. Isso não significa assimilar acriticamente, mas sim entender quais são os princípios e parâmetros que embasam o tipo de formação pretendida pela instituição. 
Ora, se o trabalho do docente dentro de uma instituição de ensino é um trabalho de formação, e se essa formação envolve, obrigatoriamente, um currículo, uma seleção de conteúdos e uma forma de organizar e administrar o ensino e as relações entre os participantes desse processo, o isolamento do professor dentro de sua "casinha" de especialidade não é adequado. Se lidamos com os mesmos alunos, a mesma organização administrativa e os mesmos recursos enquanto grupo de professores, precisamos estabelecer um trabalho verdadeiramente coletivo para que exista, de fato, uma formação coerente com os princípios que sustentamos. Evidentemente, trata-se de pensar em perspectivas inter, multi e transdisciplinares, mas acredito que a formação envolva mais coisas além das propostas de trabalhos com os alunos e com as disciplinas. 
Acredito que seja preciso, para cada professor em sua disciplina e em sua área do conhecimento, compreender, respeitar e valorizar as contribuições dos docentes em outras áreas do conhecimento, considerando as diferenças de perspectiva e visão de mundo. Obviamente, o diálogo aberto e a reflexão em grupo são as pontes mais sólidas para construir a coesão de atuação, inevitável para qualquer trabalho que se suponha coletivo. Torna-se difícil, no entanto, empreender esse diálogo que já tem caráter naturalmente conflitivo quando profissionais de ensino colocam-se de forma arrogante, menosprezando outras áreas de conhecimento e diminuindo a importância de outros trabalhos dentro do contexto mais amplo de formação. Como estabelecer um acordo entre o professor de Português e o de Educação Física se o primeiro considerar o trabalho do segundo como mera diversão? Como construir um trabalho sério e comprometido de ensino de Inglês ou Espanhol se os professores de Matemática ou Ciências considerarem seus conteúdos muito mais relevantes para a formação do estudante? Como equilibrar as coerções institucionais e o cumprimento de regras se os docentes fizerem questão de estabelecer graus hierárquicos não oficiais de poder sobre os colegas e os alunos?
Um trabalho de formação do estudante deve envolver uma contínua formação do professor, com debate e reflexão permanente, amplo, coletivo e aberto sobre suas práticas. Se não estamos preparados para trabalhar em grupo, não podemos tomar parte de forma íntegra em nenhum processo de formação educacional. Aceitar questionamentos e crescer com eles, sem prejuízo da percepção de que estamos todos no mesmo barco, parece-me ser imprescindível.
Como fazer isso? Não há receitas. Mas há talvez algumas percepções de possibilidades ligadas à experiência que tivemos com grupos de professores. 
Creio que seja necessário garantir espaços amplos de convivência dos docentes de várias formações. Aperto de mão, olho no olho, troca de ideias e impressões, isso faz muita diferença e ajuda a não criarmos uma projeção irreal do colega. Creio que seja necessário, também, valorizar cada uma das formações acadêmicas, humanas e de valores que são representadas pelos docentes em suas formas e estilos de educar. Entender como pensa o colega, por que ele pensa dessa forma e como concatenar suas ideias com as de outros colegas traz benefícios enormes à visão de formação com que se vai trabalhar. Por fim, acredito que seja importante, embora um pouco utópico nesses tempos de segmentação e departamentalização, estabelecer processos de formação entre os próprios docentes. Por exemplo, professor de Português poder aprender ou reaprender ou aprimorar seus conhecimentos de Ciências, um professor de Artes estabelecer projetos de ampliação de repertório de cinema ou artes plásticas para seus colegas, um professor de Matemática discutir questões de estatística com professores de Educação Física, um professor de Física trazer contribuições de seu mestrado ou doutorado para os colegas de áreas técnicas e tecnológicas: mais ou menos como reservar algumas aulas para os outros professores, para que possam ter uma visão mais abrangente do que está sendo realizado na escola.
Isso já seria um passo muito avançado. Se pudermos domar a arrogância, criar condições mínimas de respeito entre nossos pares e promover a consciência da importância de cada docente em um trabalho coletivo, já estamos com meio caminho andado.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O discurso antiprofessor



Nós, professores, sempre temos aquela pessoa em nossos círculos que tem prazer de diminuir nossa profissão. Normalmente, essa pessoa não se pauta pelos mesmos valores que nos conduziram à sala de aula, e tenta construir seus juízos a partir de uma visão de mundo que não é necessariamente melhor que a nossa, nem mais ética, nem mais produtiva, mas que lhe parece mais apta a produzir sucesso (seja lá o que sucesso for nesse contexto).
Algumas pessoas dizem que o que fazemos não é trabalho "duro". Não implica, por exemplo, segundo essas pessoas, grandes esforços físicos, constantes deslocamentos, decisões que envolvam muito dinheiro ou questões jurídicas ou mesmo questões que afetem a saúde ou integridade das pessoas. Assim, teríamos uma responsabilidade mais "leve", o que nos daria condição de viver de forma mais descontraída e ter mais tempo para nossos "prazeres". Parece evidente que, nesse caso, as pessoas projetam as próprias frustrações sobre os estereótipos do que não conhecem e tomam isso como verdade absoluta, já que eficaz, para sanar certos buracos do percurso da alma.
Algumas pessoas consideram, também, que somos folgados, porque temos mais tempo de descanso, férias ou outras "regalias" (repare que coloquei aspas na palavra, indicando que não acredito nisso!). Teríamos, por exemplo, 30 dias em janeiro, mais 15 em julho, mais os feriados, o que faria com que estivéssemos em condição favorecida na comparação com outras profissões. Fico a pensar que se essas pessoas avaliam a carga de trabalho extra que levamos para casa, a quantidade de tempo de que precisamos para elaborar, planejar e viabilizar os cursos que ministramos, a obrigação social (acima até da pessoal, individual, de carreira) de estarmos atualizados em relação ao que se produz em matéria de ciência e conhecimento e até mesmo as exigências físicas e psicológicas de períodos de repouso e de convívio familiar dos estudantes.
Algumas pessoas, com sorriso sarcástico, insinuam que não utilizamos de verdade as horas que nos reservam e pagam para preparação de aulas, que recauchutamos aulas de outros tempos e vivemos num limbo de crescimento intelectual que nos torna monolíticos e ultrapassados, enquanto em outras profissões o mercado ou outra entidade extramaterial promoveria a necessidade de constante evolução. Engraçado e curioso pensar que algumas dessas pessoas vêm nos procurar para sanar urgentemente problemas básicos de português, matemática, conhecimentos gerais e outros associados a suas formações, muitos dos quais foram abordados por professores durante seus períodos como estudantes.
Algumas pessoas desacreditam de nosso trabalho porque creem que o mundo de hoje em dia é demasiado dinâmico para que a aprendizagem fique limitada ao "pobre e limitado" mundo da sala de aula (por favor, repare novamente no uso das aspas). Assim, o meu e o seu filho podem aprender o que quiserem do jeito que quiserem via TV, internet, museus, viagens etc., e a escola serviria como instrumento de legitimação social para essa criatura especial, brilhante e extraordinária a quem tivemos o prazer de doar parte de nosso não menos especial DNA. Esse talvez seja um pensamento típico de uma sociedade umbigocêntrica. Menosprezar a escola como espaço de convívio, socialização, aprendizado, desaprendizado (sim, isso faz parte!), conflito de ideias e interesses, diminuir a importância da atuação do Estado sobre a formação do cidadão, por mais limitada e carente que possa parecer aos que nada conhecem de educação, é, de certa forma, acreditar que os indivíduos se tornam indivíduos no parto, e não na relação com sua cultura e com o mundo que os rodeia. Isso soa a abrir mão da responsabilidade sobre a relação com o coletivo, o que pode ser muito, muito, muito perigoso.
Algumas pessoas, por fim, dizem que somos menores ou piores porque ganhamos menos que outras profissões. Não são em menor número essas pessoas, como talvez fizesse crer a desimportância que atribuo a essa mentalidade, ao não comentá-la com o mesmo cuidado que as outras. Mas é que esse é o tipo de afirmação que se destrói na própria enunciação. Por isso, esses eu passo, lembrando apenas que salários dependem de inúmeros fatores, como transformações históricas, escolhas de investimento e até mesmo opções políticas de determinadas sociedades e governos.
Enfim, encerro meu pequeno desabafo reafirmando meu orgulho de ser professor e minha disposição de esclarecer aqueles que diminuem minha profissão acerca dos perigos imensos desse tipo de discurso para uma sociedade com graves lacunas na formação de seus futuros profissionais.